domingo, 23 de março de 2014

Coisas de que a gente se lembra, quando está de baixa - 1



Estávamos de visita ao tio de um amigo, filho do último régulo do Xipamanine.
Depois de me mostrar Taninga e a sua pequena propriedade, disse:

- Quero oferecer-lhe aquele cabrito. É seu.

Quando já me imaginava a regressar de chapa a Maputo com um cabrito pela trela (nada que, na verdade, nunca tivesse visto), percebi com um ambíguo alívio que o animal ia ser morto ali.

Sentámo-nos e conversámos longamente, naquele ritmo que a paisagem de savana pede. Alguns vizinhos foram-se juntando, depois de respeitosos pedidos de licença ao dono da casa e, estranhamente, a mim.
Acabou por vir para a mesa uma enorme travessa de cabrito grelhado e muito cheiroso. Salivei. Estávamos há mais de uma hora a beberricar o vinho que eu tinha trazido e já tinha sido aberto um garrafão, mandado vir da cantina mais próxima.

- Coma, doutor.

Servi-me e mais ninguém o fez. Insisti para que o fizessem.

- Coma, doutor. Coma...

Comi. A conversa continuava boa, o vinho ia baixando no garrafão, mas só eu comia. Os outros olhavam e sorriam, com prazer no meu avantajado apetite. Claro, estava confuso. Mas nada no ambiente indicava que estivesse a fazer algo de errado.
Quando me dei por vencido, chegou à mesa uma grande panela com cabrito guisado.

- Prove deste. É diferente. Sei que gosta de chima. Quer um pouco, para ajudar?

Sentia-me transbordar. A última coisa que queria, agora, era a minha apreciada pasta de milho. Recusei, traduzindo literalmente a fórmula de boa educação que conhecia. Afinal, toda a gente estava a esforçar-se para falar apenas em português.
Mas servi-me, de novo confuso. O sabor era tão bom e os sorrisos de prazer tão evidentes que repeti.
Por fim, tive que dizer:

- Estava tudo muito bom, mas já não consigo mais. Estou cheio, mesmo!

Num ápice, toda a gente se serviu. Longamente, repetiram e repetiram enquanto conversávamos, até nada mais sobrar. Agora, era eu quem apenas beberricava vinho "Amália" e sorria de prazer.

Finalmente, tinha percebido.
Aquele era o meu cabrito. Para eu comer até não poder mais. Só depois disso os meus amigos, e os amigos deles, deviam partilhar a boa fortuna que me tinham proporcionado.
Gente bela, estes meus patrícios de coração.

1 comentário:

JURACI VIEIRA GUTIERRES disse...

Sorri ao ler. Às vezes são fatos que parecem que só acontecem com a gente. A cultura e alguns comportamentos são universais e de pura beleza e simplicidade.