terça-feira, 6 de agosto de 2013

Curandeiros, reportagens e as razões das pessoas


O sociólogo e bloguista moçambicano Carlos Serra convidou-me a comentar esta reportagem da TV Globo, sobre os curandeiros em Moçambique.
Aqui fica o comentário:

«Conforme acontece frequentemente com reportagens que pretendem explorar o exotismo, parece-me que o mais merecedor de comentário nesta peça da TV Globo não está no que nela é dito mas naquilo que, sendo essencial, está dela ausente. Coisas essenciais que, por serem desconhecidas dos jornalistas, são substituídas pelos seus próprios pressupostos, marcados por lógicas bem diferentes – como, neste caso, interpretar à luz dos números da oferta a procura de médicos tradicionais.


Confesso o meu franco cepticismo perante a afirmação de que, mais de 20 anos depois da guerra civil, os médicos ainda serão menos de 600 em Moçambique. A afirmação de que os seus colegas tradicionais atingem os 250.000, por seu lado, já me parece pertencer ao mundo das impossibilidades práticas, quer para a sua subsistência com uma média de 80 potenciais pacientes, quer por muitos outros indicadores, incluindo o cartão da AMETRAMO que me foi concedido em 2007, como sócio honorário, e que arvora o número 7.533.
Mas o essencial, sugeria no início, não é a credibilidade desses números. O essencial é que só em áreas muito afastadas de zonas urbanas (e que não são objeto da reportagem) as pessoas poderão recorrer a médicos tradicionais por ausência de alternativas. Ou sequer por razões financeiras ou por estarem mais à vontade com eles.
Se as suas consultas (por adivinhação) são mais baratas do que as dos médicos academicamente reconhecidos, os tratamentos são geralmente mais caros e demorados. E se a sua proximidade (cultural e de estilos de vida) com os pacientes tende a ser maior, também suscitam maiores receios, quer pelos poderes espirituais que reclamam e lhes são atribuídos, quer pelo medo do paciente de ficar dependente deles. Assim, não se vai ao nyanga ou ao ché por ser mais fácil do que ir ao médico, mas apesar de ser mais difícil e assustador. 
Porque se vai, então?
Como em virtualmente todo o lado, em Moçambique (e mais ainda nas zonas urbanas) as pessoas têm contacto com diversos sistemas que interpretam e dão sentido aos acontecimentos ocorridos e ao incerto futuro. Uns têm origem científica e materialista, outros religiosa, outros supersticiosa, outros ainda foram desenvolvidos regionalmente, envolvendo fatores explicativos espirituais e materiais. Podendo reger-se de forma quase exclusiva por um desses sistemas, é mais comum que cada pessoa recorra conjunturalmente a um ou outro (conforme a pertinência que ele tenha para lidar com o problema com que a pessoa se confronta e conforme os interesses que a movem) e/ou que os combinem de forma sincrética mas bastante coerente.
Apesar dessa multiplicidade e contínua negociação de sentidos (e num quadro enformado por ela), é seguro afirmar que um desses sistemas de interpretação e domesticação do mundo e da incerteza se destaca como dominante, entre a larguíssima maioria da população: aquele que foi desenvolvido regionalmente e é considerado “tradicional”. É também esse que permite compreender o recurso aos médicos tradicionais e a sua importância social. Não apenas para resolver questões de saúde (que, de acordo com essa perspetiva, são apenas uma variante particular dos problemas sociais), nem tão pouco para apenas sarar aquela manifestação física de doença da qual se sofre.
De acordo com esse sistema de explicação e domesticação dos infortúnios, de facto, nem o estar doente nem o sofrer desgraças têm origens exclusivamente naturais. Estamos permanentemente rodeados por inúmeros perigos materiais, mas não é normal nem natural estarmos doentes ou sofrermos acidentes. Se as relações de causalidade material explicam como esses perigos ocorrem, é ainda necessário explicar o porquê de eles terem coincidido no espaço e no tempo com aquela pessoa específica, tornando-a vítima de uma desgraça ou doença.
Segundo esta visão dos infortúnios, o tal “porquê” pode decorrer de uma de três razões sociais: ou a vítima foi ignorante, negligente e/ou incompetente ao lidar com aquele perigo; ou foi alvo de feitiço (normalmente, devido a inveja ou vingança); ou os espíritos dos seus antepassados estão desagradados e suspenderam a proteção que lhe devem contra os perigos, para alertar a vítima para a necessidade de os ouvir através da adivinhação ou transe de um nyanga.
Dessa forma, se alguém contrai HIV sem saber da sua existência, sem saber como se proteger do contágio ou por, sabendo-o, não costumar usar preservativo, isso é normal. Mas se a vítima costuma usar preservativo e, daquela perigosa vez, excecionalmente não o usou e ficou infetado, é necessário averiguar as razões espirituais ou mágicas que fizeram com que não o usasse.
Isto quer também dizer que as razões da doença podem não se esgotar (e, na maior parte dos casos, considera-se que não se esgotam) nela própria e que curá-la não se limita à cura da sua manifestação física. A existirem razões espirituais ou mágicas subjacentes à doença, os mais eficazes comprimidos ou raízes não resolvem por si só o problema pois, curada aquela manifestação de doença, outra ainda mais grave se seguirá. Para além da cura imediata da enfermidade (e, quanto a essa parte, recorrer-se ao hospital ou ao quintal do nyanga depende em grande medida da eficácia que se atribui a cada um deles, na cura daquela doença específica), é necessário detetar e curar a razão que lhe subjaz. Isso é especialidade exclusiva dos médicos tradicionais, envolvendo não apenas tratamentos e medicamentos, mas também a resolução do conflito social com os vivos ou os mortos que foi diagnosticado como causa última, tendo esse diagnóstico merecido consenso por parte do paciente e dos seus familiares.
Para além da superioridade terapêutica que lhes é atribuída nalgumas áreas (epilepsia, asma, aftas, por exemplo), é esta a razão fundamental para o recurso aos médicos tradicionais por razões de saúde. Isto ocorre num quadro de conceções holísticas e em que, conforme sustenta o meu colega Emídio Gune, a maioria das pessoas não consideram estar a recorrer a sistemas de saúde diferentes, mas a diferentes prestações de cuidados de saúde – tal como não se vai a um cardiologista para brocar um dente, a um médico para tomar uma injeção, nem a um enfermeiro para ser submetido a uma cirurgia.
No entanto, o sistema de interpretação que tenho vindo a comentar fornece ainda duas outras razões de peso para o recurso aos médicos tradicionais, mesmo que os medicamentos sejam ministrados pelos seus colegas academicamente reconhecidos. Por um lado, é assumida a possibilidade de o feitiço ou os antepassados poderem bloquear a eficácia dos medicamentos ministrados, pelo que a segurança de um tratamento, mesmo hospitalar, implica que se anule o primeiro ou se apaziguem os segundos, conforme o caso. Por outro lado, curada a doença e as suas causas imediatas e subjacentes, o paciente deverá ver protegidos o seu corpo e espírito contra eventuais novos ataques futuros. De novo, em ambos os casos, especialidades exclusivas dos médicos tradicionais.
A frequente e não declarada coexistência de procedimentos terapêuticos (e não, ao contrário do que afirma a reportagem, uma população que maioritariamente nunca terá visto um médico) não deixa de apresentar riscos, tanto por duplicação e sobredosagem, quanto de anulação mútua dos efeitos farmacológicos. Essa é, creio, mais uma boa razão para que os motivos do recurso urbano aos médicos tradicionais sejam compreendidos, na sua lógica e ontologia, e para que seja lançado um efetivo diálogo tendo em vista o estabelecimento de protocolos de procedimentos que sejam mutuamente aceitáveis nesses casos extremamente recorrentes, em vez de se fazer de conta que eles não existem ou importam.
Por fim, gostaria de deixar uma nota de reflexão àqueles que possam considerar que, na prática dos médicos tradicionais, só os conhecimentos botânicos de provada eficácia farmacológica são válidos. Mesmo para quem não partilhe de todo a visão da saúde, doença e cura que expus, nem tão pouco valorize e importância dos processos psicossomáticos, há um aspeto pragmático da ação terapêutica dos tinyanga que dificilmente pode ser desvalorizado:
Um diagnóstico que envolva feitiçaria ou antepassados implica quer a aceitação consensual de que o conflito que lhe subjaz existe e é relevante, quer a mobilização do paciente, da sua família e mesmo (se possível) dos seus opositores para a sua superação e para o restabelecimento da harmonia entre as partes. Muitas vezes, isso não é conseguido. Mas, quando o é, o médico tradicional torna-se também um agente essencial de saúde social – ou, na visão holista que partilha com os seus pacientes, de saúde tout court.»


Se estão interessados em aprofundar estes aspetos, podem dar uma vista de olhos nos meus artigos "Saúde e doença em Moçambique",  "Ser curandeiro em Moçambique: uma vocação imposta?" e "O que é que a adivinhação adivinha?".