terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O medo, suicídio e eutanásia da cidadania

Acabado Dezembro, aqui vos deixo o artigo com que contribuí para o Monde Diplomatique do mês passado.


Num quadro de recessão, de precariedade, de crescente desemprego e de discursos oficiais prevendo tumultos e insegurança pública, o medo dos cidadãos não se limita a ser um sentimento capaz de refrear a sua participação em protestos e de incentivar condições laborais antes impensáveis. É também um potencial instrumento para a destruição dos mais básicos direitos de cidadania, em nome da segurança. O nosso medo pode tornar-se o nosso pior inimigo.

Há cerca de 2 meses, o Diário de Notícias divulgou partes de um relatório elaborado por dirigentes da PSP e dos serviços secretos. Em virtude das políticas de austeridade e suas consequências, os relatores previam a ocorrência dos “tumultos mais graves desde o PREC” e apontavam várias medidas a tomar. A par do reforço do treino e dos meios para contra-insurreição, tais medidas incluíam a identificação e controlo dos grupos contestatários, seus instigadores e cabecilhas – um processo que o próprio documento indicava já estar em curso.


Talvez o único pressuposto do relatório que podia merecer o acordo de especialistas que não partilhem a mentalidade policial dos seus autores fosse a consciência, por estes demonstrada, de que a actual situação social é de tal forma violenta para os cidadãos que pode vir a suscitar reacções violentas.


No entanto, esse potencial de violência não se situaria, aos olhos dos comandos policiais e de espionagem interna, na indignação, revolta e desespero de cidadãos “comuns” subitamente precarizados, empobrecidos e espoliados dos seus meios de subsistência, talvez descobrindo-se sem tecto nem comida para darem aos filhos. Para essas chefias, o potencial de violência residia, antes, em grupos que protagonizassem o protesto contra a situação criada. Por outras palavras, não procuravam a ameaça de insegurança na própria situação social; aquilo que procuravam era “inimigos internos”.


Um centramento deste tipo não constituía propriamente uma novidade, pelo menos no caso dos serviços secretos. Afinal, por diversas vezes tinham sido denunciadas escutas e tentativas de infiltração em sindicatos e mesmo partidos políticos com representação parlamentar, que assim eram tratados como inimigos do Estado. Não obstante, a sua reafirmação num relatório que pretendia estabelecer doutrina e era partilhado por comandos policiais suscitava justificadas preocupações.


Confirmava, por um lado, que os comandos dos serviços policiais e de espionagem interna vêem a sua missão de uma forma que não corresponde, em sentido estrito, à defesa dos cidadãos e da segurança pública que lhes está legalmente atribuída. Em vez disso, parecem assumir que lhes cabe defender as políticas governativas e os governos contra quem se lhes oponha, com isso assumindo como objecto legítimo da sua intervenção as expressões públicas de contestação e oposição a tais políticas, mesmo que elas se desenrolem dentro dos quadros de direitos, liberdades e garantias consignados legalmente.


A justificação para essa peculiar atitude residiria, neste caso, na violência prevista pelas hierarquias dos organismos de segurança. Mas, não existindo experiência recente de protesto violento por parte dos sindicatos e partidos políticos da oposição, o “inimigo interno” (que postulam existir) terá agora que ser procurado, à falta de melhor, entre os cidadãos que participam em voláteis e inorgânicas plataformas como aquelas que organizaram as manifestações de 12 de Março e de 15 de Outubro, ou entre os pouco relevantes grupos ou indivíduos que expressem o seu apoio a protestos violentos, mesmo que em conversas de café.



«Espiões à rasca»


Esta curiosa situação de “espiões à rasca”, por não terem propriamente organizações a quem espiar, sugere que as acções de “identificação e controlo” já assumidamente em curso (de forma ilegal, visto não existir base possível para que estejam a ser legitimadas por mandatos judiciais) versam cidadãos que se tornam suspeitos aos olhos dos órgãos policiais e de espionagem pelo facto de, precisamente, exercerem os seus direitos de cidadania.


Contudo, baseando-se esses abusos no pressuposto da violência futura, a realidade e o carácter organizado desta têm que ser enfatizados e aceites pelos cidadãos, para que os abusos sobre os seus próprios direitos (escutas, controlos de movimentos, violações de privacidade, escrutínio injustificado dos seus actos e opiniões) possam ser tolerados.


Dessa forma, cria-se um perigoso caldo de cultura política e social que, tudo indica, já estaremos a viver. Com o intuito de controlar eventuais protestos violentos, atemorizam-se os cidadãos com a iminência do caos, que só será evitável através de abusos sobre os seus direitos, por parte dos especialistas em segurança. Sub-repticiamente, somos colocados perante a troca de parte da nossa liberdade por um possível reforço da nossa segurança – uma troca que, segundo Benjamim Franklin, só é adequada a quem não mereça nem uma coisa nem outra.



Fazer acontecer o que se teme


Este processo parece ter sofrido um desenvolvimento lógico, mas algo descarado, durante a greve geral do passado dia 24 de Novembro.


Conforme os meios de comunicação social profusamente se fizeram eco, houve ao fim do dia um incidente frente à Assembleia da República, quando participantes na manifestação convocada pela plataforma que organizara a iniciativa de 15 de Outubro tentaram ocupar as escadarias exteriores do parlamento. As forças policiais retomaram violentamente o espaço, foram feitas algumas detenções, e esse pouco relevante acontecimento parecia encerrado.


No entanto, depressa se verificou que os manifestantes mais incitadores e entusiastas da ocupação da escadaria voltavam depois a ser vistos, fotografados e filmados a efectuar detenções ou a conferenciar com os colegas fardados. Nas imediações do local, grupos de outros jovens um pouco serôdios mas cuidadosamente vestidos “à revolucionário” eram também vistos e filmados a prender manifestantes, por vezes com rara violência e recurso a equipamento proibido.


Em suma, esse acontecimento veio mostrar que a preocupação com tumultos que é partilhada pelas direcções policiais e de espionagem não se limita a encontrar vazão na detecção e controlo de “inimigos internos” suspeitos de poderem vir a ser violentos. Tudo indica que, na ausência de tumultos espontâneos, as próprias forças policiais ou elementos seus acharam por bem providenciá-los, dando razão às suas expectativas e ao difuso temor popular.


A par disso, o mesmo jornal que havia dado a conhecer o preocupado relatório que comecei por comentar escolheu para manchete, no dia seguinte a uma greve geral de grande impacto, o peculiar título “Polícia teme mais conflitos após incidentes na greve”.


É verdade que, nos acontecimentos e processos complexos, não podemos descartar à partida a possibilidade de coincidências, ou sequer o papel que a ingenuidade (jornalística ou outra) possa eventualmente desempenhar. Mas seria necessária, por sua vez, uma razoável dose de ingenuidade da nossa parte para que partíssemos do princípio de que estamos, simplesmente, perante uma cadeia de acasos e uma mera confluência de idiossincrasias corporativas.


No seu conjunto, estes três acontecimentos e a forma como foram divulgados sugerem antes que - trate-se ou não de uma estratégia deliberada, e tenham ou não os seus actores plena consciência disso – vivemos um momento de potenciais abusos sobre os nossos direitos de cidadania mais elementares, cometidos e legitimados em nome da nossa protecção contra a insegurança pública, que por sua vez nos é repetidamente apresentada como uma ameaça que devemos temer. Nessa linha de ideias, deveríamos, não apenas submeter-nos a tais abusos, mas concordar com eles.



O medo, nosso inimigo


Em si mesma, a manipulação do medo como instrumento político nada tem de original. É, aliás, quase um truísmo afirmar que o medo (seja pela nossa integridade física, seja de perdermos algo que consideremos importante) é um dos elementos centrais de qualquer relação de poder.


Tão pouco será original a manipulação do medo da insegurança, para convencer os cidadãos a prescindirem dos seus direitos (primeiro, em relação aos supostos agentes do perigo, depois, em relação a si próprios), em benefício da sua protecção.


É, pelo menos, já suficientemente relevante no séc. XVIII para justificar a tal frase de Benjamim Franklin, tantas vezes citada. Mas torna-se, talvez, ainda mais relevante na nossa época, que surge marcada por um particular centramento na questão da segurança. É um bom exemplo disso a velocidade com que, mal Ulrich Beck cunhou essa expressão, se espalhou a crença de que nos países capitalistas desenvolvidos vivemos na “sociedade do risco”. Ao aceitar e repetir essa ideia, contudo, não o fazemos no sentido que lhe atribuiu esse autor (o de vivermos em sociedades que produzem ininterruptamente riscos tecnológicos incontroláveis e de consequências imprevisíveis), mas julgamos viver nas sociedades mais perigosas de sempre. Isto, mesmo se é difícil apontar, noutros locais do globo ou momentos da história, sociedades onde os seres humanos tenham estado mais salvaguardados da violência aleatória, da fome, da doença, de acidentes trágicos e de outros perigos mortais ou muito graves.


Talvez não seja, por isso, surpreendente que a utilização do medo para restringir direitos - embora bem mais antiga – tenha atingido níveis extremos de eficácia na sequência dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. Nesse caso, perante um ataque terrorista traumático e perante a repetida enfatização de que ele era apenas a ponta de um icebergue de ameaça permanente e generalizada, uma sociedade retoricamente muito ciosa dos seus direitos individuais não se limitou a tolerar que eles fossem pontualmente desrespeitados, nos casos em que estivessem em causa assustadores suspeitos de terrorismo. Aprovou e apoiou convictamente, através do Patriot Act, a instauração de um estado de excepção em que qualquer suspeita por parte das autoridades policiais permite, arbitrária mas legalmente, retirar a um cidadão os mais importantes direitos, garantias e formas de protecção de que este goza.


Aquilo que esperam de nós é algo de semelhante, embora por certo mais moderado, em virtude da enorme discrepância entre os perigos que alegadamente ameaçam quem vive de um lado e do outro do Atlântico. Mas, afinal, se tolerámos que cidadãos europeus fossem impedidos de entrar no país devido ao crime de trazerem consigo panfletos pouco agradáveis para a NATO ou as forças policiais, porque razão não deveremos, a bem da nossa segurança nas ruas, aceitar que as pessoas suspeitas de poderem querer ser violentas sejam ilegalmente esquadrinhadas, ou que o mesmo nos aconteça a nós, caso o nosso desagrado também nos torne suspeitos? Não se justificará esse preço, para que possamos ser protegidos do terrível caos dos “tumultos mais graves desde o PREC”?


Aquilo que se espera de nós, afinal, é que esqueçamos a frase de Steve Biko que lapidarmente concentrou páginas e páginas de Gramsci: “A mais poderosa arma nas mãos do opressor é a mente do oprimido.”


Porque, uma vez dado esse passo, uma vez tolerado o desrespeito pelos direitos de cidadania dos outros, por eles parecerem (às 'autoridades competentes') suspeitos de poderem colocar em risco a ordem pública, tudo se simplifica. Rápida e facilmente acharemos normal que, quando nos assustam, percamos as nossas liberdades individuais. Os nossos direitos serão coisas para tempos normais; e os tempos de excepção serão de cada vez que nos convençam disso.


O nosso medo de tumultos e insegurança, solicitamente instigado por quem de direito, tornar-se-á o instrumento do suicídio da nossa cidadania.


Por isso, a intolerância para com abusos sobre os direitos de cidadania é, hoje, mais necessária do que nunca.

3 comentários:

Anónimo disse...

Este texto é bastante interessante e bem fundamentado. Um tema de pesquisa aliciante seria - por quais razões a maioria dos eleitores votam nos seus carrascos? Estou no blog
http//anticolonial21.blogspot.com/
É um blog de livre-pensdamento.

AGRY disse...

Passei por aqui para lhe desejar um Ano Sem Medo. Parabéns pelo texto
Abraço

(Paulo Granjo) disse...

Obrigado, caro. Igualmente para si - e, já agora, para @s restantes que por aqui passem.